Crônica a esse dia de outono
O primeiro dia de outono amanheceu frio. De forma inesperada, o sol e o calor do dia anterior deram lugar à chuva e ao céu encoberto. O suor tropical foi subitamente trocado pela fresca nostalgia daquele dia de março. Chegara mais uma estação “ao verão, um adeus” dizia um verso que ele lembrava ter ouvido em um sarau sazonal.
O outono era sua estação predileta - junto com a primavera.
Ele encheu sua xícara de café fresco e, nesse dia, no caminho para a sala, olhou um pouco mais demoradamente do que o normal para o porta-retrato na estante.
Ninguém nunca entendeu o significado daquele porta-retrato vazio que parecia tanto significar para ele. “É um lembrete de que o esquecimento chega para tudo e todos” disse ele quando, certa vez, a governanta lhe perguntou.
E justamente ela surgiu ao seu lado, naquele breve momento:
- Para algo que remete ao esquecimento, parece estar lhe trazendo muitas lembranças.
Sentou-se próximo à janela enquanto o vapor do café bailava com o cenário cinza do outro lado do vidro. Pensou em como o tempo passava despercebido. É um gatuno que pula a janela e nos rouba, sorrateiramente, memórias, momentos e saúde. Não bastasse isso, deixava ali a nostalgia.
“O tempo tudo cura. O tempo tudo mata. O tempo tudo leva” dizia, mais ou menos, um outro verso de um outro poema do qual não se recordava o resto mas que, provavelmente, fosse o mesmo poema do outro verso que lhe viera à cabeça pouco antes. Sim! Certamente era o mesmo poema. Levantou-se e buscou na estante o volume que tinha adquirido no Sarau Sazonal de Outono. Depois de folhear algumas páginas o encontrou.
Eis que chega o outono Adeus, verão! Vai-te embora Assim como a primavera, outrora levou o inverno para fora Leva esse calor em exagero Pois o tempo é curto para sofrer é curto para amar de forma impura E o tempo tudo mata! O tempo tudo leva O tempo tudo cura
Foi naquele sarau que ele a conhecera.
Talvez o poeta estivesse certo mas, de forma cruel, o tempo sempre deixa alguma migalha, alguma pista, algum pedacinho de pão que os corvos não comem e que sempre nos remeterá de volta à casa.
Assim foi a memória daquele sarau. De uma pequena migalha de memória voltava toda a lembrança.
Como um filme em alta velocidade e intensamente detalhado, todos aqueles anos passaram em sua cabeça. O sarau, o sorriso que o havia conquistado como o mais poderoso feitiço já criado; os dias seguintes em cafés e restaurantes, o primeiro beijo - onde o mais banal lugar simplesmente se tornara o mais belo cenário de uma obra de arte… e o amor. Ah, como é belo o surgimento da semente que cresce tão bonita quando cultivada. Lembrou das viagens, das gargalhadas, das noites, das manhãs inteiras de conversas na cama, dos planos, do casamento - o dia mais feliz de sua vida - e da doença… a doença que, diferente do amor, não era cultivada.. era combatida… mas não havia força o suficiente para vencê-la… gradativamente tudo foi perdendo a cor, o gosto, o cheiro… lenta - ou rapidamente - tudo foi se apagando. Ele sequer lembrava da cor da rosa que jogara sobre o caixão… sequer lembrava do caixão.
Ele nunca entendeu o que aconteceu.
O livro ainda estava aberto em seu colo. Foi até a estante para devolvê-lo e olhou novamente para o porta-retrato e assim permaneceu.
O fato é que o porta-retrato não estava vazio. Estava repleto de fotos, de momentos, de cheiros, de sentimentos. Aquele porta retrato estava tão repleto de tudo isso, que a foto que originalmente estava ali, só tampava, de forma dolorosa, todas as demais que estavam agora visíveis para ele. E só para ele.
Talvez fosse hora de, naquele dia, finalmente, fazer algo que há muito deveria ter feito.
- Onde vai? - perguntou a governanta ao estranhar vê-lo sair de casa depois de tanto tempo.
- Ao cemitério.
Tristemente lindo 👏🏻
Lindo, triste e perfeito 👏👏