Antessala da Biblioteca

Share this post
A janela para os campos de lavanda
antessala.substack.com

A janela para os campos de lavanda

Mais um provável trecho do livro vindouro

Christian Gurtner
Feb 8
15
4
Share this post
A janela para os campos de lavanda
antessala.substack.com

Naquela tarde veio a lembrança: primeiro pareceu uma sensação indescritível que logo se tornou curtas imagens, como lembranças de passagens de sua infância. Então fechou os olhos e deixou-se mergulhar naquele rio sensorial.

A brisa tocava-lhe o rosto como o sopro de alguém querido num dia quente, e os sons o acalmavam num abraço confortável. Eram sons de alguns pássaros muito ao longe, que mal dava para se distinguir sob as notas quase marítimas do passeio da brisa sobre aquele tapete lilás que se esticava até onde ele podia enxergar.

Eram os campos de lavanda de Provence. O perfume, carregado pelo ar, entorpecia, com um sutil aroma, até os mais céticos pulmões. O sol de um tom de amarelo diferente de todos os outros, esquentava aquela região francesa enquanto a brisa pincelava o frescor tão acolhido por quem contemplava a beleza única daquele lugar.

Ele respirou fundo. Havia uma pequena casa centenária ao longe, para a qual começou a caminhar. Sua mão acariciava a plantação de lavanda, sentindo, distraído, a textura de cada flor que passava sob sua palma enquanto ele seguia vagarosamente.

Não havia ainda alcançado o destino e, bem próximo, poucos passos antes de sair do campo de lavanda, cessou a caminhada. Novamente fechou os olhos enquanto inclinava seu rosto para se banhar do sol da tarde. Lentamente trouxe o ar para seu peito, degustando cada nota do perfume doce e fresco das flores que o cercavam. Junto com a lavanda vem também um outro cheiro que lhe era muito familiar. Quis sorrir, assim como sentia vontade todas as vezes que aquele perfume o alcançava. Abriu o olhos e, pela janela, a viu.

Lá estava ela. Concentrada, cantarolava uma canção - como sempre fazia -. A janela a emoldurava como a obra de arte mais bela e rara, a qual ele estava prestes a, mais uma vez, admirar. Mas, nesse dia, ele não seguiu. No limiar da plantação ele contemplava aquela cena que o fazia se sentir feliz todas as tardes quando voltava para a casa.

Ele sentia o perfume dela, que bailava junto com as ervas que ela preparava e se misturava com o cheiro do campo de lavanda. Será que ela sabia como ele se sentia feliz quando via aquela cena?

Lembrou-se de quando a viu pela primeira vez. Não era difícil de esquecer, pois era a mesma sensação depois de todos esses anos. Sempre que a encontrava, seu coração batia mais rápido, seus olhos brilhavam e seus pés pisavam em tapetes divinos.

Ele nunca entendeu o que ela vira nele. Era inteligente, boa, dona de um corpo que Alexandros de Antióquia não ousaria tentar reproduzir, e um sorriso que ainda está para nascer um artista que conseguiria equiparar em sua obra. O conjunto de todas as suas qualidades a deixava tão bela e rara que nenhuma outra mulher nesse mundo - até a mais venerada atriz ou modelo - chegava perto da beleza dela, que aumentava a cada dia. Ela poderia ter o homem que quisesse. Qualquer um, mesmo. Um milionário, um médico, um artista de cinema ou um roqueiro famoso. Poderia ter um gênio dos negócios, um bom samaritano de belo corpo e sem defeitos, um sheik, um anjo ou um deus. Mas ela o havia escolhido.

Pensou se ela sabia o quanto ele se achava o homem mais sortudo de todo o planeta. Ele não era rico, não era imortal, nem médico, nem artista ou roqueiro, nem sheik e, muito menos, um anjo ou um deus. Mas ele era feliz. E num suspiro pensou se ela sabia de tudo isso. Ele esperava que sim. É bom saber que fizemos alguém tão feliz assim. Ele suspirou.

Naquele momento, enquanto cantarolava, ela sentiu algo familiar. Um som - ou talvez um cheiro. Parou a canção e ergueu os olhos para a janela. Ah… era aquela hora do dia. Viu toda a plantação lilás que se espalhava pelas colinas, o jardim na frente da casa e a grama verde que seguia até o início dos campos de lavanda. Ela olhou para o nada por algum tempo enquanto ouvia a calma brisa soprar. Fechou os olhos por um curto momento e voltou a amarrar o pequeno ramo de ervas que ela preparava, enquanto uma lágrima solitária descia pelo seu rosto. E ela voltou a cantarolar.

4
Share this post
A janela para os campos de lavanda
antessala.substack.com
4 Comments

Create your profile

0 subscriptions will be displayed on your profile (edit)

Skip for now

Only paid subscribers can comment on this post

Already a paid subscriber? Sign in

Check your email

For your security, we need to re-authenticate you.

Click the link we sent to , or click here to sign in.

Roberta Moraes
Feb 10Liked by Christian Gurtner

Final inesperado. Lindo!

Expand full comment
ReplyCollapse
2 replies by Christian Gurtner and others
Yago
Feb 8

O tempo e a janela é o que restou... Espelhos são quebrados como um motor, não se começa um incêndio sem nenhum vetor...

Expand full comment
ReplyCollapse
2 more comments…
TopNewCommunity

No posts

Ready for more?

© 2022 Escriba Cafe
Privacy ∙ Terms ∙ Collection notice
Publish on Substack Get the app
Substack is the home for great writing